Honestidade íntima - A Vergonha

Annie Ernaux
Para compreender a dimensão da obra de Ernaux, precisamos primeiro desmistificar esse conceito de “escrita plana” (ou écriture plate, no original). Não se deve confundir “plana” com simplória ou superficial. Imagine que, ao narrar um fato, a autora decida deliberadamente retirar dele qualquer excesso: adjetivos ornamentais, metáforas líricas ou julgamentos morais são descartados. A escrita de Ernaux funciona não como uma pintura impressionista, que busca evocar sentimentos através das cores, mas sim como uma fotografia forense ou um bisturi cirúrgico.
Essa escolha estética é, antes de tudo, uma posição política e pessoal. Ernaux acredita que usar uma linguagem rebuscada, cheia de floreios literários “burgueses”, seria uma forma de trair suas origens na classe trabalhadora. Portanto, ela adota esse tom neutro, quase sociológico — o que ela mesma chama de “escrita sem estilo” —, para que a verdade dos fatos atinja o leitor de forma crua. A emoção em seus livros não nasce das palavras bonitas usadas para descrever a dor, mas da exposição brutal e direta da própria dor.
Existe, de fato, um tom confessional incisivo que perpassa toda a sua bibliografia. A sensação é a de estarmos diante de um imenso diário, fragmentado em vários volumes. Contudo, engana-se quem vê nisso apenas um exercício de memórias; trata-se de uma obra eminentemente política. O objetivo de Ernaux, ao meu ver, sempre foi o de registrar e documentar a época através do prisma individual, utilizando seus relatos e a história de sua família como um espelho da sociedade. É justamente desse registro cru, dessa necessidade de transformar o trauma pessoal em documento coletivo, que nasce “A Vergonha”.
Nesta obra, a autora retorna a um domingo específico de junho de 1952 — o “marco zero” de sua perda da inocência. Sem rodeios, ela narra o momento em que seu pai, num acesso de fúria, tenta matar sua mãe. Mas o livro não é sobre a violência doméstica em si; é sobre o sentimento que se instala logo depois. Ernaux disseca como aquele episódio inaugurou nela a consciência de sua classe social e a sensação permanente de inadequação. A “vergonha” do título não é apenas o constrangimento pelo ato do pai, mas a vergonha de ser quem se é, de pertencer àquele mundo, criando uma barreira invisível e intransponível entre ela e a “vida normal” dos outros.
Ao longo da narrativa, à medida que tenta rememorar e reconstruir aquele domingo, Ernaux encadeia os eventos que se seguiram, destacando, por exemplo, uma viagem que sua mãe fizera sozinha — tratando-se, na verdade, de uma peregrinação religiosa (uma viagem a Lourdes). A autora utiliza esse fato aparentemente banal para mapear o comportamento da época: a devoção católica servia tanto como refúgio espiritual quanto como um marcador de status social naquele microcosmo provinciano. Ao descrever a mãe partindo para a peregrinação logo após a violência doméstica, Ernaux expõe a complexidade daquela mulher, capaz de transitar entre a vítima de um quase feminicídio e a devota que cumpre seus ritos sociais, mantendo a fachada de normalidade perante a comunidade.
Essa relação da família com a religião deixa, de fato, uma marca profunda na autora. O que ela observa, sob a perspectiva da mãe, é uma fé regida pela lógica da troca, quase mercantil: a devoção medida pelo que se oferece e pelo que se espera obter em retorno. Para os pais de Ernaux, donos de um pequeno comércio, o sagrado funcionava como uma espécie de “seguro” pragmático contra a desgraça. Acendiam-se velas e faziam-se promessas não por elevação espiritual, mas para garantir a saúde, o sucesso do negócio ou a manutenção da ordem doméstica. Essa visão utilitária — uma verdadeira barganha com o divino — contrastava brutalmente com o catolicismo etéreo, rígido e codificado que a jovem Annie aprendia na escola particular, aprofundando ainda mais o abismo que ela sentia existir entre o mundo “vulgar” de sua casa e o universo “elevado” da burguesia ao qual ela começava a ter acesso.
Em contraponto à peregrinação materna, Annie e o pai embarcam em uma viagem pouco tempo depois. Pela descrição objetiva da autora, o passeio parece obedecer a uma lógica de compensação ou equidade doméstica — se a mãe teve seu momento, o pai também teria o dele. No entanto, veja bem, essa é apenas a minha observação como leitor: vejo ali uma tentativa velada de reaproximação, um esforço silencioso de restabelecer o vínculo entre pai e filha, fraturado pela violência daquele domingo de junho. Embora o texto mantenha sua frieza habitual e não explicite sentimentos, essa busca por uma “trégua” afetiva é uma interpretação que me permito fazer como leitor, buscando preencher as lacunas do não dito.
Para além do trauma individual, o que esta obra nos oferece é o acesso a mais um fragmento vital do mosaico de memórias de Annie Ernaux. O livro confirma-se, mais uma vez, como um espelho da sociedade de seu tempo. Ao recusar o sentimentalismo e abraçar a análise fria, Ernaux transforma a vergonha de uma menina de 12 anos em um documento histórico, provando que a intimidade, quando escrita com essa honestidade brutal, é sempre coletiva.
Título: A Vergonha Título Original: La Honte Autora: Annie Ernaux Tradução (Brasil): Marília Garcia Editora (Brasil): Fósforo Editora Ano de Lançamento Original: 1997 Gênero: Autossociobiografia / Não-ficção Número de Páginas: Aprox. 88 (variação conforme a edição)