Mais um monstro para a coleção de Del Toro - Frankenstein

Frankenstein - Netflix
Adaptações cinematográficas de livros já consagrados enfrentam, da minha parte, determinado receio — seja pela expectativa elevada, seja pela inevitável transformação que a obra sofre ao ser transposta para a tela. Guillermo del Toro, contudo, é conhecido por seu imenso talento no que tange ao apuro estético. Há uma marca autoral carregada em seus filmes, notórios não apenas pelo vislumbre visual, mas também pela primazia de seus textos cinematográficos.
Nesta adaptação do clássico de Mary Shelley, observamos que Del Toro não demonstra pressa. Com uma duração robusta de 2h30, os primeiros trinta minutos são dedicados exclusivamente à construção do enredo. Esse tempo de tela é fundamental para alicerçar a psique de Victor Frankenstein, um jovem filho de um renomado médico. Aqui, vale destacar a atuação impecável de Charles Dance, que encarna o pai de Victor com uma amargura palpável, conferindo peso dramático à figura paterna. Apesar da notoriedade e das habilidades do médico, a família acaba marcada pela tragédia: Victor perde a mãe durante o parto do irmão. Angustiado pela perda, o jovem questiona o pai acerca do que ocorrera naquele dia; o patriarca, entretanto, oferece uma resposta que se torna o motor da existência de Victor: a obsessão por interromper a morte.
Ultrapassada essa construção inicial, a narrativa transcorre de maneira fluida, sustentada por uma identidade visual arrebatadora. A fotografia opera em uma dualidade constante, oscilando entre tons quentes — o âmbar e o dourado que iluminam os interiores e a “febre” da criação — e o frio azulado e gótico que domina o mundo exterior e a morte. Tudo isso é envelopado pela assinatura inconfundível de Alexandre Desplat. O compositor, velho colaborador de Del Toro e cuja maestria muitos reconhecerão de imediato — talvez remetendo à densidade emocional que imprimiu na saga Harry Potter —, constrói aqui uma partitura meticulosa. Sua trilha é sóbria, entrando no tempo certo não para causar espanto gratuito, mas para sublinhar a melancolia da trama. É dentro dessa atmosfera densa que o elenco se expande, abrindo caminho para as presenças que orbitam a obsessão de Victor.
Oscar Isaac surge em tela assumindo um Victor Frankenstein febril e arrogante, proferindo afirmações em um tom quase colérico que estabelece um contraste imediato com as figuras ao seu redor. É justamente nessas primeiras interações que encontramos Christoph Waltz, radiante e impetuoso, articulando sua interpretação com o magnetismo que lhe é peculiar. Em contrapartida, Felix Kammerer, no papel de William, irmão de Victor, entrega um trabalho que me pareceu quase esquecível; à primeira vista, sua presença soa meramente funcional, existindo apenas para gerar um contraponto pálido à intensidade do protagonista.
Já a entrada de Mia Goth, na pele de Elizabeth, traz à tela uma aura quase angelical. Goth entrega uma atuação contida, distanciando-se das expressões exacerbadas que se tornaram sua marca nos filmes de Ti West. Elizabeth surge na trama como uma mulher que enxerga para além da fachada de genialidade de Victor, buscando alcançar o homem atormentado sob a superfície. No entanto, essa promessa de romance e amadurecimento colide com um detalhe visual perturbador: o hábito constante de Victor de beber leite. Esse gesto, aparentemente banal, denota uma infantilização latente do protagonista. Cria-se um contraponto incômodo: enquanto Elizabeth lhe oferece um amor adulto e real, o leite nos lembra que Victor permanece emocionalmente preso ao luto materno, como um órfão que ainda busca nutrição no elo perdido.
Por fim, a peça central dessa tragédia é revelada com a entrada de Jacob Elordi. O ator utiliza sua natural imponência física para compor uma Criatura que, paradoxalmente, desperta mais compaixão do que medo. Longe dos estereótipos de brutalidade irracional, Elordi entrega uma performance marcada por uma vulnerabilidade grotesca; seus movimentos e grunhidos remetem não a uma fera, mas a uma criança abandonada num corpo que não compreende. É através do olhar de Elizabeth que a verdadeira natureza do ser é validada em tela: onde Victor enxerga apenas um “erro” abominável e uma afronta à sua ciência, a personagem de Mia Goth vê uma alma. Ela não recua diante da deformidade; pelo contrário, estabelece com a Criatura uma conexão silenciosa e imediata, reconhecendo ali a pureza que falta ao próprio criador.
A trama expande seu simbolismo religioso para além da estética gótica, tecendo paralelos diretos com textos bíblicos. Quando Victor busca refúgio em um navio, fugindo da perseguição de sua obra, desenha-se uma clara alusão à narrativa do profeta Jonas. Ao declarar-se o alvo da ira da Criatura e pedir para ser lançado ao mar — um clamor ecoado pelos marinheiros, que veem nele a fonte do infortúnio, com exceção do capitão —, Victor assume a posição daquele que atrai a tempestade por tentar fugir de sua responsabilidade criadora. Curiosamente, a Criatura também busca respostas na fé, mas por um viés doloroso. Em determinado momento, ao ter acesso às Escrituras
Sagradas, ele se depara com a estória de Adão e Eva. Essa leitura, contudo, funciona como um espelho cruel: ao perceber que até o primeiro homem fora agraciado com uma companheira, a Criatura é atingida pela consciência abissal de sua própria solidão. Ele entende, pela letra sagrada, que é o único de sua espécie, condenado a vagar sem par.
Após o caos, as peregrinações e o rastro de morte — provocados não pela “besta”, mas pela negligência do criador —, a verdade se impõe como um golpe definitivo: Victor é o verdadeiro monstro. Ainda assim, a direção de Del Toro recusa o cinismo absoluto. Nos minutos finais, o cineasta encontra espaço para conceder a Victor uma redenção silenciosa, ao mesmo tempo em que entrega à Criatura razões para prosseguir. Ao final, subverte-se a lógica clássica do horror: a “aberração” não é eliminada, mas sobrevive. Resta a ela caminhar pelo mundo, carregando a memória e a resiliência de uma humanidade que o próprio humano foi incapaz de sustentar.
Cortinas fechadas e sessão encerrada. O filme é mais uma obra a integrar o catálogo de monstros de Del Toro, cineasta que demonstra há anos ser especialista nesse tipo de narrativa. A produção é, de fato, visualmente rica e o roteiro, assinado pelo próprio diretor, é sólido, apresentando diálogos e situações que se desenvolvem bem em tela. O elenco, de maneira geral, organiza-se dentro de um arco arquitetado tal qual em uma peça, com entradas e saídas marcadas. Nenhuma atuação aqui é excessiva; como já pontuei, Felix Kammerer talvez seja o ponto mais apagado, mas, decerto, trata-se de um traço do personagem e não de uma falha interpretativa. Por fim, Del Toro imprime uma direção segura, mas esteticamente contida no que tange a cortes e planos-sequência. Há cenas que poderiam ter oferecido mais; nota-se que o trabalho de edição se debruça mais sobre os efeitos visuais do que no ritmo entre as cenas. Enfim, é um filme que se sustenta primordialmente em seu roteiro e no corpo de atuações; faltou-lhe inventividade.