Estação AP42

Por Antonio P. Carvalho

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O Universal no Particular - Uma Mulher (Une Femme)

Annie Ernaux - Une Femme

A literatura, quando atrativa — e quando possuidora do idioma que é nativo ao leitor —, tem o poder arrebatador de nos transportar para dentro de nós mesmos, acessando nuances de sentimentos e memórias. Ela acaba por criar uma conexão imediata e visceral, derrubando as fronteiras entre quem escreve e quem lê, transformando o texto em uma conversa silenciosa. Esse efeito torna-se possível, sobretudo, ao se tocar em temas que são universais e caros a muitos de nós. Foi exatamente essa a sensação que tive ao dar sequência às minhas leituras com Annie Ernaux, que agora fala acerca de sua mãe em Uma Mulher.

A obra ilustra com perfeição um conceito clássico da teoria da literatura — abordado, com diferentes nuances, por Hegel, Tolstói, Habermas, Foucault e tantos outros —, que postula uma verdade fundamental: o caminho para o universal passa, inevitavelmente, pelo mergulho profundo no particular. Refiro-me à ideia de que, para tocar a humanidade inteira, o escritor não deve buscar generalizações abstratas, mas sim descrever com fidelidade cirúrgica a sua própria aldeia, a sua própria dor ou, no caso de Ernaux, a sua própria mãe. É o chamado “universal concreto”: quanto mais detalhista e honesta a autora é sobre a intimidade restrita de sua família operária, mais ela se conecta com a experiência coletiva de leitores em qualquer parte do mundo.

Nesta obra, Ernaux percorre um caminho similar ao que fizera anteriormente ao falar do pai em O Lugar. De imediato, ela nos informa acerca da morte da mãe. Move-a, tal como antes, uma ânsia por escrever, por “colocar no papel” quem fora essa mulher, mesmo diante da dificuldade assumida de processar o próprio luto. Viajamos, assim, mais uma vez por suas memórias, obtendo um retrato do que foi a infância da mãe e o início de sua vida operária até o momento em que conhecera o pai. A partir daí, as memórias deixam de ser a narrativa de outrem para se tornarem o fruto de seu próprio olhar observador, atravessando da infância à vida adulta.

Ernaux deixa claro, mais uma vez, que repetições desnecessárias não lhe agradam. Ao reafirmar isso, informa ao leitor que se absterá de relatar determinados eventos, pois já o fizera ao narrar a trajetória do pai na obra anterior. A partir desse ponto, segue-se a narrativa focada exclusivamente na figura materna, bem como na complexidade de seu relacionamento com ela.

Desvela-se, então, uma dinâmica marcada por uma profunda ambivalência. A mãe de Ernaux não é apresentada como uma figura de ternura plácida ou de sabedoria silenciosa; pelo contrário, ela surge como uma mulher de temperamento vulcânico, cuja forma de amar muitas vezes se confundia com a aspereza e o controle excessivo. Há aqui um paradoxo doloroso que a autora disseca com maestria: foi a mãe quem impulsionou a filha para os estudos e para a ascensão social, desejando ardentemente que ela escapasse daquele meio operário; contudo, é também ela quem se ressente quando esse objetivo é finalmente alcançado. Cria-se, assim, um abismo cultural entre as duas: quanto mais a filha domina os códigos da burguesia intelectual, mais a mãe se sente rejeitada e diminuída, transformando o orgulho do sucesso em uma ferida aberta de estranhamento.

Ainda assim, nota-se uma preocupação constante de Ernaux em adotar uma linguagem que a mãe compreenda; há nela um desejo genuíno de inseri-la em seu universo particular. Vemos isso se concretizar no instante em que a mãe passa a residir com a filha — uma mudança sugerida pela própria mãe, sob o pretexto de que poderia auxiliar nas pequenas tarefas domésticas. Com o passar do tempo, porém, surge um impasse: a mãe começa a sentir-se como uma empregada, ainda que jamais tenha sido colocada nessa posição por Ernaux. Ironia cruel, visto que fora ela mesma quem sugerira esse caminho.

O fato é que a mãe, acostumada a uma vida independente, vê seu mundo mudar drasticamente com a morte do marido. Nele, ainda residia o último elo com a realidade que ela conhecia. Com a sua partida — e mesmo após tentativas frustradas de adotar novos hábitos ou hobbies —, ela percebe que aquele mundo antigo já não existe mais. Resta-lhe a filha, que se tornou exatamente aquilo que ela desejara. Todavia, essa realização acaba por causar episódios de discórdia e profundo estranhamento entre as duas.

Entretanto, Ernaux ainda enxergava na mãe o mundo em que fora criada; reconhecia nela os traços do comportamento camponês e a atmosfera viva do seu universo de menina. Mais tarde, porém, assiste-se a uma troca de posições: o envelhecimento da matriarca impõe à filha a responsabilidade de tomar decisões que a mãe já não tem condições de assumir. Há uma dolorosa inversão de papéis à qual ela custa a se resignar. Arrisco-me a dizer que tal processo provocou nela não só grande angústia, mas também uma dor profunda, ao ver a mãe regredir a um comportamento infantilizado — quadro que, mais tarde, após avaliação médica, seria diagnosticado como a Doença de Alzheimer.

Nos parágrafos subsequentes ao diagnóstico de sua mãe, Ernaux deixa patente o seu desconforto em dar seguimento à narrativa, pois o ato de rememorar toca em uma ferida que se encontra aberta e exposta — vale lembrar que ela inicia o processo de escrita cerca de dois dias após a morte da matriarca. Ainda assim, ela reconhece que não há outra escolha senão escrever. Para a autora, a literatura surge aqui não como um mero consolo, mas como uma necessidade visceral de “salvar” a mãe do esquecimento absoluto. É preciso fixar a existência daquela mulher no papel, dar-lhe uma dimensão histórica e social antes que os detalhes se dissolvam no tempo. Assim, a escrita torna-se um ato de resistência contra a morte, uma tentativa derradeira de unir, finalmente, a mulher que escreve à mulher que lhe deu a vida.

Agora, já próximo ao desfecho, a autora recorre mais uma vez a um recurso narrativo que poderíamos associar à “quebra da quarta parede” — ou, tecnicamente, à metalinguagem. Ela expõe a dificuldade de prosseguir com a escrita e chega a confidenciar ao leitor que, ao reler as primeiras páginas redigidas, já não reconhece ou mal se lembra do que havia relatado. Essa confissão de estranhamento não é gratuita; ela reflete o esgotamento emocional de quem tenta capturar o incapturável. À medida que o texto caminha para o fim, Ernaux percebe que a escrita, que servira como um último elo vivo com a mãe, está prestes a se romper. Concluir a obra é, de certa forma, enterrar a mãe pela segunda vez. O livro deixa de ser apenas um relato biográfico para se tornar a materialização da própria ausência, onde as palavras tentam, em vão, preencher o silêncio definitivo que se aproxima.

Aliás, em determinado momento — e não me recordo a passagem exata —, Ernaux menciona o gênero textual em que aquela obra poderia se encaixar: não seria exatamente uma biografia, nem tampouco um romance. Ela sugere que o livro é, na verdade, “algo entre a literatura, a sociologia e a história”. Essa definição não é mero preciosismo acadêmico; ela resume a essência do projeto literário de Ernaux. Ao recusar o rótulo de “biografia”, ela nega o foco na individualidade heroica; ao recusar o “romance”, ela rejeita a ficção puramente inventiva. O que resta é esse terreno híbrido onde a dor íntima de perder a mãe serve como documento histórico de uma classe e de uma época, provando que a história de uma única mulher operária pode conter, em si, a história de todo um século.

E é com uma contundência devastadora que Ernaux encerra a obra, entregando-nos um dos finais mais comoventes da literatura contemporânea:

“Não ouvirei mais sua voz. Era ela, e suas palavras, suas mãos, seus gestos, sua maneira de rir e de andar, que uniam a mulher que sou hoje à criança que fui. Perdi o último elo com o mundo do qual eu vim.”

Assim termina a narrativa: com a ruptura definitiva do cordão umbilical que ligava Annie não apenas à sua mãe, mas à sua própria origem de classe. Contudo, há aqui um paradoxo redentor. Ao escrever essa última linha, reconhecendo a perda do elo, Ernaux o refaz para sempre através da literatura. Uma Mulher consolida-se, portanto, não apenas como o relato de um luto pessoal, mas como a prova de que a escrita possui a força necessária para resgatar a vida da dissolução do tempo. A mãe, antes silenciada pela doença e pelas barreiras sociais, agora existe eternamente — complexa, contraditória e real — nas páginas que acabamos de ler.

Ficha Técnica

Título no Brasil: Uma Mulher

Título Original: Une Femme

Autora: Annie Ernaux

Tradução: Marília Garcia

Editora no Brasil: Fósforo

Ano de Publicação (Original): 1988

Ano de Publicação (Brasil): 2021 (Edição Fósforo)

Gênero: Auto-sociobiografia / Não Ficção

Páginas: 96 (aproximadamente)