Pirraça, pernas, perseguição e mais - O Agente Secreto

Reprodução - O Agente Secreto - Kleber Mendonça Filho
Em um diálogo recente com meu pai, ele comentou que os primeiros filmes de Kleber Mendonça Filho (KMF) possuíam um caráter muito autoral — ou, para usar o termo exato dele, “artesanal”. Até aquele momento, eu jamais havia me detido sobre essa característica. Recordei-me, então, de uma entrevista em que o próprio KMF brincava com o fato de sempre lhe perguntarem quem assinava sua direção de arte, ao que ele respondia: “eu mesmo”. Para situar você, caro leitor: a direção de arte é a alma estética de um filme, englobando desde o figurino e os cenários até a paleta de cores da fotografia.
Confesso que essa “ausência” estrutural nunca me incomodou. Sempre fui tão aficionado pelo trabalho de KMF, magnetizado por seus roteiros e pela força de suas tramas, que a estética puramente visual ficava em segundo plano. Mas então vieram Aquarius, Bacurau e o primoroso Retratos Fantasmas. Cito estes — distanciando-os propositalmente de O Som ao Redor — por acreditar que representam o auge do apuro cinematográfico de KMF. Como meu pai bem observou, os anteriores são excelentes, mas carregam aquela marca artesanal; já estes demonstram uma musculatura técnica diferente. Foi a partir dessa evolução que comecei a me questionar: o que esse diretor, já genial, conseguiria realizar com um orçamento substancial e uma liberdade criativa ainda maior? A resposta materializa-se agora. A resposta é O Agente Secreto.
Aqui, Wagner Moura encarna um pesquisador de uma universidade federal. Estamos no Brasil de 1977, sob a presidência de Ernesto Geisel, um período de abertura lenta e gradual no que se refere à política doméstica, temos agora um EUA acusando o Brasil de ferir os direitos humanos (logo depois do Brasil começar a se afastar do governo norte-americano) e a derrubada do AI-5. Fatos históricos à parte, nosso protagonista, mesmo sem ter realizado qualquer ato substancial que justificasse a perseguição estatal, vê-se encurralado em um conflito desigual. Ele entra na mira de Ghirotti, um empresário do ramo da tecnologia — e, a bem da verdade, um grande escroque — que instrumentaliza a máquina do regime militar para pavimentar seus interesses e eliminar obstáculos.
Sem medir esforços, Ghirotti contrata uma dupla de assassinos de aluguel para eliminar o personagem de Moura, que agora sustenta uma vida dupla, ora como Marcelo, ora como Armando. A chegada desses pistoleiros altera o ritmo da trama: a tensão, antes psicológica e burocrática, torna-se física. Aos poucos, à medida que a trama se desenrola, o protagonista perde o controle sobre seus dois disfarces e vê o cerco se fechar, percebendo que, em um regime de exceção, não existem esconderijos seguros para quem se torna um alvo do poder econômico aliado à repressão estatal.
Nesse percurso, Marcelo encontra refúgio no conjunto de apartamentos gerido por Dona Sebastiana, vivida pela extraordinária Tânia Maria. Aclamada pela crítica estrangeira, sua performance confirma a impressão de que KMF escreveu o papel sob medida para ela. Em cena, a fronteira entre atriz e personagem parece se dissolver: Tânia não apenas interpreta, mas empresta sua voz, seu corpo e, sobretudo, seu inseparável cigarro a Dona Sebastiana. O que ocorre ali é uma incorporação completa, conferindo à personagem uma autenticidade visceral que domina a tela.
Durante a primeira hora de projeção, KMF dedica-se a pavimentar o argumento central, e o faz de maneira sublime. A narrativa desenvolve-se com precisão cirúrgica, despida de exageros, floreios ou elementos desnecessários (sim a perna cabeluda é um elemento necessário, ela é parte do folclore de Recife e compõe a parte cómica da trama) ; tudo em tela existe por uma razão. Com o contexto devidamente apresentado e a psique do protagonista estabelecida “sob medida”, a trama realiza uma virada decisiva:
O que se segue é uma guinada de gênero. KMF abandona o registro puramente observacional para mergulhar o espectador em um thriller de suspense denso, que remete aos grandes filmes de paranoia política dos anos 70. A direção de arte e a fotografia não se limitam a reconstruir o passado, mas edificam uma atmosfera sublime, temos um retrato bem construído dos lares, das ruas, avenidas e do que fora o cinema. O vigor da direção reafirma-se no uso de flashbacks, que costuram a trama de maneira ímpar. É através desse recurso que somos apresentados a Fátima, antiga companheira de Armando, vivida pela talentosíssima Alice Carvalho. A atriz aproveita cada segundo de seu tempo de tela para entregar uma figura magnética. A inserção de Fátima transcende a simples participação; ela se torna um dos alicerces da narrativa. Sua presença é tão determinante que, a partir de sua entrada, torna-se impossível conceber o funcionamento do enredo sem a sua existência.
Completando esse núcleo, temos Fernando, filho de Armando e Fátima, vivido pelo jovem talento Enzo Nunes. O ator mirim imprime com precisão a figura da criança que aguarda; contudo, há uma nuance interessante em sua composição. A ansiedade do menino não parece orbitar o regresso dos pais — talvez por um mecanismo de defesa ou pura inocência —, mas sim o desejo febril de assistir ao filme Tubarão. A presença da obra de Spielberg não é gratuita; apresentada logo no início da trama, a figura da fera marinha funciona como um eco simbólico do perigo real e invisível que cerca aquela família, mas filtrado pela fantasia infantil.
Por fim, dentro desse universo de metalinguagem e amor à sétima arte, é impossível não destacar a presença de Carlos Francisco. O ator, figura carimbada na filmografia de Kleber Mendonça Filho, surge como Seu Alexandre, o projecionista do Cinema São Luiz. Sua participação cria um elo direto e afetuoso com Retratos Fantasmas, funcionando quase como um easter egg sentimental que reafirma o cinema como o santuário máximo do diretor, mesmo em tempos de chumbo.
Cortinas fechadas e sessão encerrada. Afirmo, com toda a certeza, que esta é a obra máxima de KMF. De fato, o tempo investido no desenvolvimento da trama foi vital para nos entregar um retrato pirracento, bem pintado e escrachado do outrora Brasil de 70 — um reflexo que ainda conversa intimamente com o nosso Brasil atual. Não há, na obra, pontas soltas; tudo é amarrado por um roteiro límpido, de diálogos bem construídos e, sem sombra de dúvidas, sustentado por uma direção de arte impecável.
Título Original: O Agente Secreto Ano de Lançamento: 2025 Direção: Kleber Mendonça Filho Roteiro: Kleber Mendonça Filho Gênero: Thriller Político / Drama Nacionalidade: Brasil
Elenco Principal: Wagner Moura como Marcelo / Armando Luciano Chirolli como Ghirotti Alice Carvalho como Fátima Tânia Maria como Dona Sebastiana Enzo Nunes como Fernando Carlos Francisco como Seu Alexandre