Estação AP42

Por Antonio P. Carvalho

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A Vida Como Ela É - O Lugar (La Place)

Annie Ernaux - La Place

Reconheço a urgência em escrever em qualquer instância; o mesmo ocorre comigo. Nos últimos dias, li o que Annie Ernaux descreve como socioautobiografia. A leitura escolhida fora O Lugar. No livro, Ernaux narra a trajetória humilde de seu pai, que vivera no interior da França, num cenário pastoril que, para muitos, poderia ser descrito de forma idílica. Todavia, a autora — conhecida por sua “literatura plana” (écriture plate) — nos convida a observar a vida no campo de forma crua, tal como ela é. Ou seja, não há uma romantização desse padrão de vida: o que ela apresenta ao leitor é uma rotina de sobrevivência e produção voltada tanto para o consumo das famílias quanto para o seu sustento.

Para a realização da narrativa, ela empreende todo um processo de rememória, revisitando sumariamente o que fora descrito pelo próprio pai. Ali, além da descrição da paisagem — que ocorre sem profundos detalhes —, somos apresentados a uma família normanda típica, que observara de perto o caos e os horrores frutos da Primeira Guerra Mundial (ou a Grande Guerra): a fome, os receios e as incertezas do pós-guerra. Seu pai, descrito às vezes como um homem austero, outras vezes como um sentimental (a depender da época em que ocorre a narrativa), é de fato a figura masculina que busca seu lugar num mundo cheio de diferenças sociais.

Há, por parte da autora, um anseio em descrever ao leitor os receios que, normalmente, as pessoas do campo tinham em relação às que viviam nas grandes cidades.

Conforme descrito por ela, os camponeses eram retratados nos filmes e em outros tipos de conteúdos como pessoas ignorantes, incapazes, às vezes, de realizar tarefas que demandassem um pouco mais de conhecimento. Isso ocorria de tal forma que fez a própria autora, à época, se perguntar se ela — nascida e criada no campo — também seria capaz de cometer esses pequenos deslizes de intelecto. Há, portanto, uma preocupação dela em retratar a forma pela qual a sociedade, à época, enxergava essa camada da população.

O que vemos a seguir é uma narrativa que não trata apenas das questões familiares que a autora observara e revisita agora, mas também uma crítica à maneira como a sociedade mais abastada, como um todo, cobria-se de uma vaidade nada etérea para com quem vivia no campo. Isso afetava tanto a vida de pessoas como seu pai, a ponto de estes se inibirem de desenvolver um pensamento intelectual — ou seja, de formar e expressar opiniões — por puro receio do que poderia ser dito pelas classes economicamente dominantes.

Dentro desse cenário, seu avô paterno era, como bem descreve a autora, sempre lembrado como o homem que não sabia ler nem escrever. Mesmo tendo qualidades ímpares, inerentes aos trabalhadores do campo, essa condição fez com que ele considerasse o processo educacional pouco importante à formação no meio rural. Isso levou o pai de Ernaux a abandonar a escola por volta dos doze anos, dedicando-se integralmente ao auxílio no sustento familiar. Entretanto, ambicioso por conquistar algo melhor para si e a fim de constituir família, ao observar que não suportava mais aquele tipo de vida, ele busca emprego nas fábricas e torna-se um operário — uma profissão bem vista àquele tempo.

Aos poucos, à medida que a narrativa avança a autora afasta-se da vida que outrora fora narrada pela pai em sua infância e nos apresenta uma visão quase exclusivamente sua do comportamento do pai para com ela e a mãe de maneira geral, agora não temos mais o que fora narrado a ela pelo pai e sim o que ela observa, Ernaux nos apresenta uma jovem que agora com avançadas primavera pouco conversa com o pai e nada se encontram tendo em comum, algo que atravessa a sua adolescência como sendo algo insuportável e incomôdo até a chegada da vida adulta quando a personalidade do pai lhe artinge em sua camada de compreensão.

Agora, como uma mulher adulta e com um sólido núcleo familiar constituído, observamos alguém que visita as memórias de menina. Ela busca, talvez, consolo para a partida do pai na imagem projetada pelas lembranças da infância: o pai que a levava ao parque de diversões, ao cinema, à biblioteca. Ainda assim, a sua narrativa deixa pouco espaço para emoções romantizadas da vida que tivera ao lado da família. E é exatamente assim — sem sentimentalismos — que ela inicia o enredo, tratando da perda do pai.

Ouve-se por aí que Ernaux não produz “literatura”; dizem que o texto é, no mínimo, interessante, mas não digno do Nobel que ganhara em 2022. No entanto, pelo que pude observar em sua íntima forma narrativa, seu texto equivale a um autorretrato. Digo isso pois a narrativa não é meramente autobiográfica; ela vai além. É um retrato que a autora pinta de si mesma (e de sua origem), e o realiza de maneira primorosa.

Ficha Técnica

Título no Brasil: O Lugar

Título Original: La Place

Autora: Annie Ernaux

Tradução: Marília Garcia

Editora no Brasil: Fósforo

Ano de Publicação (Original): 1983

Ano de Publicação (Brasil): 2021 (nesta edição)

Gênero: Auto-sociobiografia / Memórias / Não Ficção

Páginas: 72 (aproximadamente, varia conforme a edição)

Prêmio Principal: Nobel de Literatura (2022 - pelo conjunto da obra)